... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 44 - Agosto 2012

Resenha - Ronaldo Cagiano

Chocolate Heaven - Painting On Canvas by Mazoo


Oficina criativa

Em Cheiro de chocolate e outras histórias, Roniwalter Jatobá não só mantém-se fiel ao mapeamento afetivo, geográfico e psicológico de suas origens, como também atualiza seu olhar sobre a vida difícil dos migrantes na metrópole cosmopolita. Conta histórias a partir de sua própria experiência existencial, reconstruindo cenários, vidas e mundos do interior e da cidade. E ao recontá-las, num trânsito simbiótico entre a invenção, as vivências e a memória, fala de uma realidade humana e social tangida pela luta em sobreviver e marcada pelo afastamento das raízes, o deslocamento e a insularidade.

Inventário de contos e crônicas, essas narrativas constituem um painel pungente e poético de trajetórias que falam de perto de um País que na segunda metade do século passado desenvolveu-se de forma avassaladora, na mesma intensidade em que a vida de muitos trabalhadores brasileiros sofria seus revezes. É essa gente que luta contra as adversidades de um Nordeste sem perspectivas e amiudado pela miséria, e que busca na Paulicéia industrializada o abrigo para suas esperanças, que Jatobá espelha com um talento cinematográfico e uma dicção singular. Campanário e São Miguel Paulista, Jacobina e Itaim, Bananeiras, Campo Formoso e avenida Paulista, Salvador ou Vila Ré, na cidade ou na periferia vamos reconhecer nos protagonistas de Cheiro de chocolate a metáfora de homens e mulheres esgarçados, encontradiços em qualquer lugar do mundo, com suas dores e delícias que carregam uma profunda carga de universalidade.

Seres em permanente deslocamento, em constante busca: do trabalho, do amor, de melhores condições; ou do retorno. Nas vozes e peles de Artur, Oswaldo, Waldomiro, Roberto, Naninho, Júlia, João de Deus, Gustavo, Leila, Janice, Arlindo, Leididai um recorte dos sonhos, desilusões, desencontros, desencantos, caminhos nublados, pesadelos, da névoa do passado ou das tempestades que esperam dissipar em algum lugar do futuro. Dizem ao leitor muito além da simples apreensão de seus quotidianos.

Se o livro é uma extensão da memória e da imaginação – como retratado por Borges e sustentando o diálogo em um dos contos – o autor, ao longo de sua carreira, “vem buscando meios de criar personagens, gente com vida”, como agora, ao traçar com delicadeza a vastidão comovente desse caleidoscópio de situações. Ao abordar o mundo (ou o) que viveu e testemunhou, Jatobá peculiariza em sua oficina criativa o mesmo sentimento de Goethe: “O começo e o fim de toda atividade literária é a reprodução do mundo que me cerca por meio do mundo que está dentro de mim.”

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