... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 44 - Agosto 2012

Crônica - Roniwalter Jatobá

From The Brazil Series, by Bob Dylan

Duas margens

Tinha Dalva que nem moça era, pois se perdeu na conversa rica de homem de posse, quem sabe, atrás de migalhas que esse pai dela, naquela época, nunca pôde dar. O resto, em casa, tudo homem. Homem, depois veio, até o burrego de Dalva, filho de pai alheio, pai no sangue, só, pois arrenegou Dalva antes do filho nascer, assim fiquei sendo avô e pai ao mesmo tempo. Lembro. Quando Dalva começou a tomar forma de mulher que ia parir, assustei na minha honra, mesmo honra de desfavorecido, e via aquilo como uma afronta, um susto na vida nunca antes acontecido. Fazer o quê?

Depois dessa descabeçada de Dalva, fui pensando, imaginando na lei que pendia dum só lado, Adelina chorava nos cantos e tresvariava parecendo ver Dalva, filha mais velha, nunca casando com aquela honra de moça desviolada, mas não, eu no muito pensar só via a miséria: a lida muita de sol a sol sem trazer alento nenhum em casa; fim de tarde, sentindo as costas latejando pelo cabo de enxada no capinar sem muita parada; os meninos crescendo, cada qual tomando forma de homem e todos andando pelas ruas à cata do que fazer, sem nada achar; na noite, depois de muita labuta, vendo Adelina soprando o fogão fumegando onde dias nem comida tinha, os meninos de olhos pidões, acocorados pelos cantos com rostos esfomeados.

Pra onde ir a não ser São Paulo?, tinha pensado. O pensamento tomando forma e vindo por primeiro um medo, medo das coisas que a gente não faz idéia, mas, quando via na frente, verdadeiro, os meninos de olhos remelentos, Dalva com o menino palpitando dentro dela, olhados na rua como se estivessem falando da minha fraqueza, nessa fraqueza de pai sem pulso forte, sem ódio na cara, sem coragem pra tomar partido dessa honra perdida, mais, muito mais, pinicava na mente a vontade de ir, me vir, trazer todos, tentar a vida de novo, quase cansado agora, mas vendo os meninos homens crescendo e tendo trabalho, canto de terra nunca tive lá, São Paulo falavam de serviços, pra qualquer idade, em qualquer tempo, oferecidos.

Aqui em São Miguel Paulista a casa é pobre, sei. Foi difícil acostumar os meninos que não deviam ficar na frente da casa por causa dos carros que passam na rua poeirenta bem apressados; se cuidassem da valeta que corria perene dia e noite com cheiro de bosta, que era doentio. Aí, os meninos de maior porte foram arranjando serviço por este São Paulo: Pedro numa construção em Pinheiros; Alberto no Brás, caixeiro de loja, menino de mandado; Dalva, deixava o menino dela, já de mamadeira, e ia toda manhã pra tecelagem na Mooca e voltava de tarde, cansada, unhas esfiapando se gastando nas mãos, mas sempre dizendo que tava gostando, amizade já tinha, parecia que tinha nascido aqui.

Trabalho mesmo na vinda pra cá, pouco que deu, foi Dalva de barriga grande querendo estourar de gorda, nos sete meses com filho sem pai, digo assim sem pai, pois é mesmo que ser, ela chorando no ônibus desde quando saiu de Bonfim e isso quando fui dar fé. Já chegando em Minas, me informaram, na divisa do Rio, andei dentro do ônibus mesmo correndo, a ponto de cair, me equilibrando nos bancos, pra desenferrujar as pernas e vi, vi os olhos de Dalva marejados ainda de choro, perguntei o que tem menina?, ela respondeu e chorou ainda mais, um choro sentido de fazer dó. Quando descemos na rodoviária Dalva fraquejou, o suor marejava como lágrimas na fronte, aqui não tinha calor, tinha frio, o receio de Adelina nela, todos muito se descuidando dos meninos que ficaram olhando a rua sem saber de nada, baixei os malotes e botei todo mundo junto, arrodeados. Dalva sentou segurada por Adelina se apoiando no chão da calçada, gente passava virando o rosto pra ver a mulher que parecia que ia morrer, eles diziam, também tinha: medo disso acontecer, não aconteceu, Dalva foi melhorando, as pernas dela foram agüentando o corpo, se botou em pé ainda com Adelina dando adjutório, foi se acostumando, foi se segurando sozinha, pouco depois, já levava um irmão mais novo seguro pela mão, o filho dela na barriga se bulindo, ela dizendo, menos que o movimento da rua.

Aqui, nunca ninguém falou do erro de Dalva, que ela é mãe de filho sem pai, num sei mais o quê, nada disso. Logo ela arruma algum marido e vai viver a sua vida.

Gosto daqui. Quando vejo Adelina ralhar com os meninos mais novos para que fujam de perto da valeta que corre água fedorenta, bem perto de casa, e os meninos entram pra assistir desenho na televisão que Dalva no primeiro mês de firma comprou a prestação ou quando escuto algum vizinho reclamar das filas do instituto, da demora muita no atendimento, me vem a lembrança de lá que nem isso tinha, me alegro. Aí, vejo Adelina em hora de folga já fazer amizade com os vizinhos da rua naquele bate-boca sem compromisso. Depois cuidando da casa nos afazeres, ligando a televisão pra afastar os meninos da rua digo: dá uma vontade de pegar todo mundo de minha terra, lá, e trazer todos aqui pra avistarem a minha sorte.

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